A Lei de Terras e os Registros Paroquiais

Aprovada após intenso debate, a Lei de Terras de 1850 foi finalmente regulamentada pelo Decreto número 1.318, de 30 de janeiro de 1854. Com nove capítulos e 108 artigos, o Regulamento procurou dar conta das inúmeras situações relacionadas à ocupação das terras. Para tanto, ordenou a criação da Repartição Geral das Terras Públicas, órgão responsável por dirigir a medição, dividir e descrever as terras devolutas e prover sua conservação. Também era de competência da Repartição propor ao governo quais terras devolutas deveriam ser reservadas à colonização indígena e fundação de povoações, e quais deveriam ser vendidas, além de fiscalizar tal distribuição e promover a colonização nacional e estrangeira. Cabia também à mesma Repartição realizar o registro das terras possuídas, propondo ao Governo a fórmula a ser seguida para a legitimação dessas terras e revalidação de títulos.

Estes registros - os chamados Registros Paroquiais de Terras - tornaram-se obrigatórios para "todos os possuidores de terras, qualquer que seja o título de sua propriedade ou possessão". Eram os vigários de cada freguesia os encarregados de receber as declarações para o registro de terras. Cada declaração deveria ter duas cópias iguais, contendo: "o nome do possuidor, designação da Freguesia em que estão situadas; o nome particular da situação, se o tiver; sua extensão, se for conhecida; e seus limites"

Proclamada como uma lei inauguradora, capaz de "firmar a propriedade territorial", dando ao proprietário "tranqüilidade e seguridade", a Lei de Terras de 1850 não esteve acima da sociedade que a criou. Inspirada - segundo alguns - pelo sistema de colonização de Wakefield ela não foi, no entanto, mais um mero reflexo da inspiração baseada num modelo externo e, muito menos, resultado das elucubrações teóricas de dois redatores. Aprovada no mesmo ano que pôs fim ao tráfico negreiro, a Lei de Terras também não esteve automaticamente ligada ao problema da famosa transição do trabalho escravo para o livre. Debatida, discutida, virada pelo avesso ao longo de sete anos (de 1843 a 1850), ela também não foi apenas resultado das clivagens partidárias do período e também não refletiu como espelho os interesses dos cafeicultores fluminenses.

Ela foi isto tudo (certamente não de modo tão esquemático) e muito mais. Para os advogados, ela inaugurou conceitos jurídicos ainda hoje utilizados no Brasil. Outros, ainda, vêem na lei um recurso para a defesa dos interesses do Estado em relação a suas terras devolutas ou na defesa de pequenos posseiros em processo de expulsão. Ela foi também isso, e ainda mais. Como toda e qualquer lei, esteve imbricada nas relações pessoais, teve uma história e buscou assegurar critérios universais, legitimadores dos princípios jurídicos que procurou consagrar. Como qualquer lei, ela esteve intimamente ligada ao passado e foi para dar conta dos problemas dele advindos que homens de várias tendências a debateram, criticaram e defenderam na Câmara e no Senado. Mas o passado nada tem de singular. Para cada um dos representantes no Parlamento havia uma interpretação - que conflitava com outras - para explicar a história da ocupação territorial do Brasil e lhe conferir um sentido. Para alguns, era o direito dos posseiros que deveria ser salvaguardado; para outros, era preciso diferenciar os cultivadores dos meros invasores do terrenos alheios. Para outros ainda, o importante era salvaguardar os interesses dos sesmeiros, os titulares das terras. Neste debate de interpretações, o texto da Lei de Terras não deixou de expressar esta arena de lutas. E sua aplicação, como registrar ou não a sua terra após a regulamentação da Lei, em 1854, concretizou a continuidade refeita desta mesma arena, na qual combatiam os que a queriam como a possibilidade real ou apenas imaginária para regularizar o seu acesso à terra.

(adaptado do livro de Motta, Márcia. Nas Fronteiras do Poder. Conflito e Direito à Terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro / Vício de Leitura, 1998)